quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Das coisas que são lembradas e esquecidas, ou o inverso

"... se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida." (Chico Buarque. Leite Derramado. 2009, p.184)

      Com este mote de Chico Buarque, comento um tema sugerido para este trabalho, entretanto, abandonado antes mesmo de ser aceito: Alzheimer. É fácil encontrar pessoas vitimadas por esta doença, há médicos especializados em tal, quase todas as famílias com idosos apresentam um caso clínico. Por esta razão o mal tem se tornado elemento de comentários em bate papos, palestras, fóruns sobre envelhecimento e qualidade de vida, até mesmo tem logrado espaço no campo artístico. Embora não tenhamos elencado nenhum entrevistado(a) diagnosticado, o pensamos e, entre os elencados ditos saúdáveis, há o "alemão" espreitando ou já instalado em parentes.
       A epígrafe que abre esta postagem é fala de um personagem acometido pelo mal, no texto de Chico Buarque. Este Eulálio narra no texto suas memórias, em um presente idoso que se mescla ao passado reiteradamente. Os deslocamentos no discurso da personagem reproduzem as tramas não lineares dos pensamentos e memórias. Curioso que, ao longo de nossas entrevistas percebemos nos entrevistados a tentativa árdua de organizar linearmente suas memórias ou, ao menos, o discurso sobre as mesmas. "Começar do começo", pelo que aconteceu primeiro foi algo que todos - sem exceção - fizeram. Obviamente, por se tratar de depoimentos e não de ficção, nas ocasiões em que foi necessário repetir a resposta, em virtude de algum problema técnico - interrupção externa, barulho no ambiente, variação de luz - as memórias já não se repetiam na íntegra. Algo se perdia, algo era sintetizado, o entusiasmo já não era o mesmo. (É uma pena só ter uma câmera)
       Foi apostando nestes lapsos e reconexões que a Cia do Hiato (SP) criou o espetáculo O Jardim, apresentado em Recife durante o Festival Recife do Teatro Nacional 2011. O enredo apresenta as memórias de uma senhor com Alzheimer, a vida presente de um certo Thiago, a neta do Thiago falando sobre a destruição da casa de seus antepassados, consequentemente, destruição também de sua memória. Explorando os ecos, os hiatos, a lógica não cartesiana, o espetáculo utiliza da simultaneidade de certas cenas (e dos tempos) e permite que a plateia escolha por onde começa sua versão - dependendo de onde você senta, varia o tempo que você acompanha primeiro. É necessário assistir! (Não à tôa o diretor foi premiado pela APCA) http://www.youtube.com/watch?v=RCn0eAX3ORs
       Pincei uma fala para escrever um texto para o blog: "As coisas duram mais que a gente." Minha memória também falha e pode não ter sido assim, mas foi neste sentido.
      Realmente é doloroso que as coisas durem mais que as pessoas, mas isto também pode significar que alguma parte das pessoas permanece enquanto duram as coisas. Todas as obras de arte e objetos ou invenções, ou descendentes, criados ou produzidos por autores que, a parte de suas obras, já não vivem mais.
      Na mesma feliz semana que vimos O Jardim, ouvimos Marina Colassanti (II Mostra Sesc de Literatura Contemporânea - Sesc Santa Rita) dizer que escritor escreve numa tentativa de resistir ao tempo, de durar mais do que o pouco que lhe é dado viver, e, aos setenta anos, esta senhora se diz  consciente de ter menos tempo que o já passado. Esperanças e desejos para o futuro: receber a morte sem amargura.
     Para fechar este texto já sem pé nem cabeça, perdido entre o começo e o fim, a fala de um Pinóquio "Eu sou feliz, porque sei que vou morrer. Se não soubesse, talvez não fosse feliz."


Dedicado a Meire.

Ana Paula Sá

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