terça-feira, 25 de outubro de 2011

A pensar

         Há mistério nas coisas, mesmo nas mais cotidianas e banais. A linguagem, por exemplo, não deixa de ser um, mesmo sendo um instrumento por nós usado incessantemente, mesmo estando todos mergulhados nela até o âmago. Mas isso não esmaece o mistério, pelo contrário apenas o amplia. Vejamos como um homem submerge em suas reminiscências e traz, por meio da linguagem, imagens nuançadas de sua infância; como ele vê e, por meio da fala, nos faz ver também o que somente ele presenciou: outros dias, outras vidas, outras paisagens e pessoas.
        As narrativas produzem sentido e conhecimento do mundo por meio da linguagem. Ela nos torna também sujeitos das ações que nos são narradas, nos atraem em suas tramas, nos comovem, nos sobrepujam, nos enlaçam. Dimensões espaciais e temporais nela fazem ninho e nos aninham; quando nos damos conta, lá vamos nós embarcados em outras águas.
       De súbito, não estamos mais na sua sala de estar. Corremos com ele pelas ruas poeirentas, pescamos com ele no inverno piscoso, jogamos bola, presenciamos o amor palpável pelo pai, a emoção nos instantes derradeiros da mãe tuberculosa, quando só contava oito anos, passeamos nos ônibus puxados a cavalo, pegamos com ele o trem matutino, comemos com ele o pão, descobrimos com ele o esquecimento do documento valioso, compartilhamos de suas angústias, medos e esperanças.
       A uma narrativa os gregos davam o nome de Mythos (enredo, trama, intriga). Uma história é um registro de jornada (cômica ou trágica ou tragicômica), que ora nos faz rir, ora nos faz chorar (ou as duas coisas ao mesmo tempo). Estudiosos se debruçaram sobre o fenômeno: Propp, Lévi-Strauss, Greimas, Ricoeur, Barthes... Mas quem chegará a um veredicto correto, perfeito, exato? As narrativas são mediações entre dois momentos: um ponto de partida e outro de chegada. Sim, sabemos, mas isso explica muito? Esclarece tudo?
       Não.
       O que não dá, contudo, é para ignorar que - como agora, frente a frente com o ex-padre Reginaldo Veloso, no Morro da Conceição - um homem se identifica com a sua história, um homem na verdade é a sua história, com tudo o que isso possa implicar: diversidade de circunstâncias, objetivos, iniciativas, indecisões, perspectivas, tomadas de decisão, arrependimentos, reviravoltas e conseqüências delas decorrentes.
       “Vejo nas intrigas que inventamos o meio privilegiado mediante o qual reconfiguramos nossa experiência temporal confusa, informe e, no limite, muda” (Paul Ricoeur).
       Não dá para discordar. Ou dá?


Quiercles Santana

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A partir de nossos quintais

          Já falamos aqui sobre a dificuldade de escolher os entrevistados e as apreensões que isso nos trouxe. Felizmente, algumas destas já foram superadas, vez que as entrevistas começaram a ser realizadas desde o início deste mês. 
         Uma estratégia nossa de superação dos obstáculos foi iniciar pelos mais próximos, de modo que havendo problemas no decorrer da captação poderíamos retornar sem maiores impecilhos.
        Normalmente atribuímos aos que nos são próximos o título "de casa", mas neste caso, "de casa" não é apenas uma expressão corriqueira, reflete a realidade. Nossos primeiros entrevistados, dona Francisca e seu Pedro, são realmente nossos, dos nossos lares, de nossas vidas, guardiões de um passado também nosso. A mãe e o avô; a avó e o bisavô; a índia das matas e o moleque praieiro. Duas figuras com muitas histórias, trazendo em comum a passagem por várias casas, vários pousos, a migração para a capital, com suas descobertas. Histórias tecidas desde tempos, agora prestes a serem entrelaçadas por nossas mãos.
         Saindo um pouco dos nossos quintais, vamos à Universidade, encontrar o professor Miguel Espar, e vejam como as teias são tecidas sem que percebamos - ele foi professor de mais de uma pessoa de nossa equipe, as quais, anteriormente, não se conheciam. É em seu local de trabalho que Miguel nos recebe generosamente e compartilha - essa palavra parece fazer bastante sentido em seu discurso - conosco parte de sua bagagem.
         Por enquanto só podemos divulgar fotos e minúsculos fragmentos das entrevistas, o que já vai aguçar a curiosidade, tenho certeza. Do mais, muita histórias ainda vêm por aí. É só aguardar e conferir.
http://www.youtube.com/watch?v=uO0mWLAlWAs
http://www.youtube.com/watch?v=FQ-CxRzaPJM
        
        Ana Paula Sá

Neófitos

       O meu interesse particular pelo The Beatles não se deu pelos discos, mas por uma antológica passagem do filme Ferris Bueller's Day Off (EUA-1986),de John Hughes, que aqui no Brasil ficou conhecido por Curtindo a Vida Adoidado e virou febre entre o público adolescente da época.
           Por causa da canção Twist and Shout, cantada numa parada alemã, pelo Matthew Broderick, foi o que me levou, quatro anos mais tarde a me deparar frente a frente com o Imagine (EUA-1988), de David L. Wolper e Andrew Solt, ainda no Ensino Médio, em uma escola da periferia do Recife, veiculado em VHS, durante uma aula (pasmem!) de Geografia.
Talvez por isso é que, na medida em que os anos escoavam, fui nutrindo uma paixão crescente, não tanto pelo The Beatles, mas por aquele modo distinto de narrativa: pessoas com histórias reais, perdas e danos reais, alegrias e dramas reais.
           Ao longo dos últimos decênios, cavoucando aqui e acolá, descobri outros realizadores, como Eduardo Coutinho, Joris Ivens, Robert Flaherty, Walter Ruttmann, João Moreira Salles, Vladimir Carvalho, etc. E cada vez mais fui me interessando pela área.
           Se então já estava envolvido com o teatro e me mantinha atento na forma como os encenadores trabalhavam duro para transpor para o palco as mais diversas dramaturgias, os documentários se transformaram, por sua vez, em um forte instrumento de pesquisa para o meu trabalho tanto como ator como encenador.
          Contudo, nunca me vi como realizador... até a semana passada.
          Pela primeira vez na vida, tive a alegria de gravar a primeira entrevista do primeiro documentário do qual participo. O trabalho, uma série de depoimentos de cunho memorialísticos, constitui uma seara nova para nós, os idealizadores. Estamos muito felizes, mesmo sabendo que o percurso daqui até o fim é ainda muito longo.
          Venham sempre aqui, no blog (Contos Ruas Casas & Quintais), confiram as fotos e vídeos postados, acompanhem, troquem ideias conosco, perguntem, participem. Será um prazer.

http://www.youtube.com/watch?v=PjVbsYzHKDc    

          Quiercles Santana